Recebo com frequência dúvidas se o consumo de leite de vaca é saudável ou não. Devemos tomar e oferecer para as crianças? O leite e seus derivados aumenta a formação de muco e catarro? Atrapalha ou ajuda no emagrecimento? Dá gases? Engrossa a pele? Aumenta as crises de asma ou rinite? Intolerância à lactose ou alergia? O cálcio do leite pode ser perfeitamente substituído?
Vamos então entender essas respostas com base na ciência e na evidência, com respaldo dos estudos científicos e organizações internacionais e nacionais (ver referências ao final do artigo).
No início da vida:
O alimento mais perfeito e completo para o ser humano é o leite materno. O leite materno deve ser o único alimento/bebida da criança até os seis meses de vida. O leite materno deve continuar a ser oferecido até pelo menos os dois anos de idade ou mais. Ele garante saúde e nutrição, melhora a digestão, previne infecções e alergias, promove o adequado crescimento, desenvolvimento infantil físico, emocional, cognitivo e do sistema nervoso.
Nem o leite de vaca, nem nenhum derivado de leite de vaca (queijo, iogurte, etc) deve ser oferecido para crianças até os dois anos de idade, salvo em condições especiais de dificuldades de amamentação e por indicação expressa do pediatra ou nutricionista. Para deixar claro, a tão famosa fórmula (ou fórmula infantil) dos bebês é feita de leite de vaca.
Infelizmente no Brasil o desmame ocorre mais cedo do que deveria. Apesar de inúmeros esforços conseguirem aumentar a duração da amamentação no país, ainda nossas crianças recebem menos leite materno do que deveriam.
Na ausência do leite materno, precisamos de alternativas para a ingestão adequada de nutrientes. E é aí que entra o leite de vaca. Então vamos conhecer as vantagens e desvantagens de consumir leite de vaca e derivados:
O leite de vaca é a secreção das glândulas mamárias da vaca para alimentar os bezerros. É um alimento com alto teor de proteínas, fonte de vitamina D, potássio, magnésio, zinco e, sobretudo, cálcio. O leite de vaca é a maior fonte de cálcio na natureza.
Mas o cálcio do leite de vaca é bem absorvido pelo nosso corpo?
Sim, embora não seja um excelente tipo de cálcio, o leite de vaca ainda é a maior fonte de cálcio absorvível. Cerca de 30% do cálcio do leite é absorvido pelo corpo humano, contra cerca de 60% do brócolis e da couve-manteiga (excelentes fontes), e cerca de 5% do espinafre e 15% do feijão. Como o leite de vaca tem muito cálcio, mesmo sendo apenas um terço absorvido, ainda assim é bastante cálcio. Você precisaria comer umas 4 porções de brócolis (4 xícaras) para ter a mesma quantidade de cálcio absorvido num 1 copo de leite!
Mas o ser humano é a única espécie na natureza que consome o leite de outros animais e continua tomando leite na idade adulta. Isso não é contra a nossa natureza?
Esse argumento é bem capcioso. De fato, o ser humano é o único ser na natureza que consome leite de outros animais. E é também a única espécie que consegue utilizar a tecnologia de alimentos ao seu favor… Somos a única espécie que aprendeu a usar o fogo e cozinhar seus próprios alimentos, que desenvolve e consome alimentos industrializados com aditivos químicos, armazenados sob-refrigeração ou na salmoura, cultivados em monoculturas gigantescas repleta de agrotóxicos, etc. Atribuir todos os problemas nutricionais da humanidade ao leite de vaca é injusto e perigoso.
É verdade que uma criança em aleitamento materno não precisa de leite de vaca até os dois anos de idade?
Sim, a criança em aleitamento materno deve receber apenas leite materno idealmente sob livre demanda, até os dois anos de idade ou mais. Somado ao leite materno, a partir dos 6 meses de vida, a criança deve receber os alimentos complementares.
Caso a criança em aleitamento materno com mais de seis meses de vida passe várias horas do dia longe da mãe, para garantir a ingestão adequada de nutrientes reforço praticar a amamentação sob livre demanda noturna e livre demanda diurna sempre que possível. Em alguns casos excepcionais, pode ser recomendada a amamentação mista (leite artificial e leite materno) para bebês após os seis meses de vida, sob orientação expressa médica e/ou de nutricionista.
Para quem o leite de vaca e seus derivados é indicado?
Para crianças desmamadas; para crianças amamentadas somente a partir dos 2 anos de idade; para adultos e pessoas de terceira idade de ambos os sexos.
Para quem o leite de vaca é contraindicado?
Para crianças amamentadas, para adultos e crianças intolerantes a lactose ou alérgicos a proteína do leite de vaca.
Quanto de leite/queijos/iogurtes uma criança e um adulto deveria comer?
Segundo as guias de alimentação e nutrição brasileiras elaboradas ou respaldadas por órgãos oficiais como o Ministério da Saúde, a Universidade de São Paulo, a Sociedade Brasileira de Pediatria, o Conselho Regional de Nutrição, entre outras, a recomendação é:
- Crianças maiores de 1 ano (que não recebem leite materno): cerca de 3 porções ao dia (cada porção equivalente a 1 xícara das de chá de leite ou 2 fatias de queijo)
- Adultos: cerca de 3 porções ao dia
Por outro lado, a Universidade de Harvard dos Estados Unidos recomenda um consumo bem inferior de leite de vaca e derivados: apenas 1 a 2 porções diárias para a maioria das pessoas, no máximo. Esse consumo deve ser complementado com um bom consumo diário de vegetais verde escuros como os brócolis e a couve, com adequado estado nutricional de vitamina D (presente em leite e derivados, alguns peixes marinhos e principalmente produzida no nosso organismo a partir da exposição à luz do sol) e também de vitamina K (presente em vegetais de folhas verdes).
Qual a diferença de intolerância à lactose e alergia ao leite?
As pessoas intolerantes à lactose têm dificuldade para digerir o açúcar do leite (lactose) porque não possuem no seu intestino a enzima lactase em quantidade suficiente. Intolerantes à lactose vão perdendo a capacidade de produzir essa enzima depois de certa idade, às vezes na infância mesmo ou apenas quando adulto. É genético. Especialmente pessoas de origem afrodescendentes e asiáticas são mais susceptíveis. Ou seja, a maior parte da humanidade!
Se você não tem intolerância à lactose e exclui totalmente a lactose da sua vida, pode sim desenvolver essa intolerância porque seu corpo vai diminuindo a quantidade de lactase que produz.
Algumas pessoas podem tolerar uma pequena quantidade de lácteos ou não sentir quase nada ao consumir alguns derivados do leite que contenham menos lactose (iogurtes e queijos), porém se tomam um copo grande de leite sentem muito desconforto (por exemplo, muitos gases, cólicas abdominais, diarreias, sensação de estufamento, mal-estar, etc.).
Se você suspeita que tem intolerância à lactose, converse com seu médico. Existe um exame que faz um teste da sua capacidade de digerir a lactose e permite assim um diagnóstico preciso.
Já a alergia ao leite é na verdade a Alergia à Proteína do Leite de Vaca (APLV). Não existe alergia à lactose.
A APLV é a alergia mais frequente em crianças. A alergia é uma reação do sistema imunológico à presença de uma determinada proteína no alimento. Geralmente alérgicos à proteína do leite de vaca são também a do leite da cabra, já que são proteínas bem parecidas.
Os sintomas podem ser leves ou bastante severos. Imediatamente (até 1 hora) após consumir leite de vaca, os sintomas de alergia podem ser urticárias, inchaços, vômitos, diarreias e chiados respiratórios. Sintomas mais tardios (horas ou dias) depois de consumir o leite podem ser diarreias, vômitos, dermatites (eczema). Em casos mais graves, pode ocorrer choque anafilático com risco de vida.
Cerca de 2,5% das crianças com menos de 3 anos têm essa alergia. APLV tipicamente surge na infância e eventualmente pode desaparecer na idade escolar ou na adolescência. Pessoas com APLV têm que excluir totalmente o leite de vaca e derivados da sua alimentação, já que mesma uma quantidade mínima pode desencadear os sintomas.
Vale a pena lembrar que bebês amamentados não têm intolerância à lactose porque no leite materno tem bem mais lactose do que no leite de vaca. Alguns bebês mesmo amamentados podem ter a alergia à proteína do leite de vaca, já que essa proteína pode passar pelo leite materno se a mãe consome o leite de vaca.
É verdade que o leite de vaca aumenta a formação de muco e agrava a asma, rinite e chiado respiratório?
Não. Todos os estudos científicos até hoje não conseguiram estabelecer nenhuma associação entre o consumo de leite de vaca e a ocorrência de asma ou sintomas respiratórios, salvo em casos excepcionais de pacientes que sofrem de alergia à proteína do leite de vaca (APLV).
Então, somente apenas para quem tem APLV os sintomas respiratórios acima descritos estão associados ao consumo de leite de vaca e derivados lácteos.
Muitos estudos já foram feitos sobre esse tema e todos falharam em demonstrar que o leite ou os lácteos em geral aumentam a formação de muco. Mas mesmo assim, esse é um tema complexo porque muitos médicos e profissionais ligados à medicina natural/alternativa defendem essa teoria. Desde o século 12 existem relatos de proibição de leite de vaca para asmáticos! Talvez você já tenha escutado por aí que quem está gripado ou tem rinite não deva tomar leite… Inclusive autores que admiro muito pelo seu trabalho em outras áreas da saúde (por exemplo, a Laura Gutman) falam publicamente que o leite aumenta a formação de muco.
Mas vamos entender o que de fato acontece à luz da medicina baseada em evidência:
De acordo com estudos científicos, pessoas que percebem a tal formação de muco/catarro nas vias respiratórias após tomar leite de vaca também sentem esse sintoma quando tomam uma bebida à base de soja (placebo). De fato, o leite (especialmente o leite integral) tem uma textura particular que pode deixar sobre a língua e a garganta um tipo de revestimento e causar essa sensação de muco/catarro. Mas notemos que o mesmo efeito é sentido com placebo ou leite de soja, e não se trata de muco ou catarro, é apenas uma sensação temporária na garganta.
Um estudo curioso encontrou justamente que aquelas pessoas que acreditam que o leite produz muco, quando gripadas, relatam que sofrem mais tosses e sintomas de congestão nasal ao consumir leite. Porém, o estudo demonstrou que elas não produzem mais secreção nasal ou muco do que as pessoas que não acreditam nessa associação. Ou seja, a autossugestão pode influenciar nos sintomas percebidos pelos pacientes!
Um artigo da Nova Zelândia tentou explicar justamente a hipótese porque em alguns casos realmente o leite pode influenciar negativamente os sintomas respiratórios. A hipótese médica sugere que não se trata de uma simples relação de causa e efeito entre o leite e a formação de muco. O tipo de leite consumido deve ser o leite do tipo A1 (um tipo específico de leite cuja proteína caseína é do tipo A1 e não A2); além disso, da digestão dessa proteína um outro peptídeo específico (conhecido como beta-CM-7) deve passar pelo intestino e chegar até a circulação sistêmica; e por fim os tecidos devem estar inflamados para haver a produção de muco. Por isso apenas um pequeno subgrupo de pessoas com asma ou sintomas respiratórios podem ter melhoras na dieta de eliminação de lácteos. Pacientes asmáticos que têm essa proteína (beta-CM-7) no sangue são os que teriam maiores riscos de aumentar a produção de muco com o consumo de leite. Essa hipótese ainda não foi testada em seres humanos num experimento científico.
O leite de vaca engorda?
Existem três tipos de leite: integral, semi-desnatado e desnatado, que diferem no teor de gorduras e vitaminas lipossolúveis (especialmente vitamina A e D), presentes em maior quantidade no leite integral. O cálcio é o mesmo nos três tipos de leite. Se você precisa restringir o consumo de gorduras e calorias, opte por um produto semi ou desnatado.
É melhor leite em pó, de caixinha ou fresco? Ou iogurtes?
O leite em pó geralmente é fortificado com vitaminas e minerais, e pode ser útil para pacientes com carências nutricionais. O leite de caixinha contém conservantes e tem um maior prazo de validade (imagine só, um leite que dura meses fora da geladeira!). O leite fresco (tipo A) é pasteurizado e não contém conservantes, sendo o produto que mais recomendo, junto com os leites e iogurtes orgânicos.
Para bebês com menos de 12 meses que não são amamentados, fórmulas infantis são mais recomendadas.
Os iogurtes contém bactérias saudáveis que ajudam na microbiota intestinal. Os melhores iogurtes são aqueles que contém apenas leite e fermento lácteo e, no máximo, algo de frutas. Muito cuidado com os iogurtes e produtos lácteos com açúcar e aditivos químicos, altamente desaconselháveis especialmente para crianças. Leia sempre os rótulos dos alimentos!
Mas conheço tanta gente evitando leite e derivados que quero fazer um teste.
Dietas sem lactose estão na moda. As guias e recomendações são: evitar qualquer dieta de restrição ao leite de vaca sem um diagnóstico médico. Inclusive o Conselho Regional de Nutrição tem um parecer técnico indicando que “A restrição ao consumo de leite e derivados somente deve ser feita aos pacientes com diagnóstico clínico confirmado de Intolerância à Lactose, sensibilidade à proteína do leite (Alergia à Proteína do Leite de Vaca – APLV) ou de outras condições fisiológicas e imunológicas”.
Saliento que qualquer restrição alimentar implica em carências nutricionais se não for contrabalanceada, por isso é tão perigosa e deve ser realizada sempre com orientação profissional. Se você precisa eliminar qualquer grupo alimentar do seu cardápio, procure um nutricionista antes de se submeter a qualquer dieta.
Espero que esse texto sirva de utilidade e ajude a esclarecer tantos mitos que escutamos sobre alimentação. Caso você deseje saber mais, pode entrar em contato e deixo também alguns links e referências abaixo.